Vitalina Varela (2019), um filme de Pedro Costa

Eis o grande cinema, aquele que não diz, mas mostra. E aquele rosto tem a história esquecida de uma cidade, oferece também um retrato social de Portugal, então o filme ganha o status de simbolizar algo que está além daquele espaço, o filme passa a ser um registro do  simbólico, de uma historia e de um drama social, articulado brilhantemente.  

A composição parte de uma tela escura, um espaço escuro. Pontualmente, a luz ilumina apenas os elementos cinematográficos que interessa ao diretor serem vistos. Então a luz ilumina o rosto de Vitalina Varela, deixando o restante quadro a meia sombra apenas o necessário para que o espectador se situe no espaço, e possa fixar seu olhar naquele rosto. E que rosto.  A face de Vitalina revela um passado em Cabo Verde. Seu primeiro dialogo se dá apenas com 40 min. de filme aproximadamente. Uma mão negra encosta num poste da esquina. Aquela população marginal de Lisboa,  num bairro de habitações simples, quase precárias, virá a ser todo o universo do filme, onde o marido de Vitalina havia vivido. A câmera permanece neste território marginal do tecido urbano, e plano a plano, enquadramentos consistentes vão construindo o filme como uma sinfonia, expressam as marcas do tempo daquele território observado. Além da saga da Vitalina para realizar o funeral do marido, o filme mapeia o passado dele através dessas marcas e por diálogos pontuais. Mais um ponto interessante aqui, quando o filme passar a jogar com esse elemento não visto, o marido, e sua história, fica a  cargo da imaginação  do espectador compreender suas nuances, através da poderosa interpretação e atuação de Vitalina Varela, premiada como melhor atriz no festival de Locarno  de 2019. 

Acredito a que a noite tenha sido um elemento importante na narrativa e na própria construção do filme, um elemento notório, por ser parte básica de um roteiro, não por acaso isso irá determinar boa parte de outros fundamentos do filme. Essa escolha vai além de compor o quadro a parir do escuro, acredito que tenha a ver também com a possibilidade de gerar o silencio necessário, aquele silencio da madrugada onde o tempo mesmo parece parar, tudo isso, para dar ainda mais potencia para o rosto e a atuação de Vitalina. Ou seja, a escolha da noite, é também uma ideia sonora do filme. A ausência de diálogos, permite que a composição visual e a atuação  entrem numa sinergia surpreendente, fazendo com que o tempo dilatado, experiencia básica do cinema de Pedro Costa, como Tarkovski para citar um cineasta que gosta de esculpir o tempo desta maneira, longe de ser  enfadonho, como alguns críticos apontaram, -  ao meu ver, é uma  possibilidade de absoluta contemplação do filme e do próprio cinema, através de tudo  isso que foi dito, consistência no enquadramento 4:3, na poderosa figura daquela mulher cujas marcas da historia estavam estampadas no rosto, e mais surpreendente ainda, sem a necessidade de dizer muito. Eis o grande cinema, aquele que não diz, mas mostra. E aquele rosto tem a história esquecida de uma cidade, oferece também um retrato social de Portugal, então o filme ganha o status de simbolizar algo que está além daquele espaço, o filme passa a ser um registro do  simbólico, de uma historia e de um drama social, articulado brilhantemente. 

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