Cinema Direto: Uma linguagem | Comparação entre Crônica de um Verão (1961) de Jean Rouch e Cabra Marcado pra Morrer (1984) de Eduardo Coutinho
No filme "Chronique d'un été" (1961), Jean Rouch e Edgar Morin, foi usada a inovadora câmera de cinema 16mm Éclair NPR (Noiseless Portable Reflex). O primeiro marco do cinéma verité como linguagem e estilo de produção cinematográfica, é tecnológico. A portabilidade das novas câmeras 16mm proporcionaram aos cineastas a mobilidade necessária para captar a vida como ela era, dando a impressão de que as pessoas em cena não estavam atuando. Um dos fundamentos desta linguagem era justamente a capacidade de adaptar a principal ferramenta técnica do cinema, a câmera, em condições que proporcionasse ao realizador condições de captar “a verdade" , a “verité”. O áudio, muito importante também neste filme (foi usado o gravador Nagra III), deu a Jean Rouch finalmente a possibilidade de sincronizar a imagem com som de modo direto, algo que fazia falta nos seus filmes anteriores, mas não menos importantes, filmados na África, como, em Moi un Noir (1958), para citar apenas um exemplo da vasta filmografia de Rouch. Em "Chronique d'un été" Rouch anunciava, em off, que o filme era um experimento: a tentativa de captar a vida diante da câmera. Uma socióloga fazia pesquisa nas ruas de Paris, perguntava aos transeuntes se eram felizes em sua vida. Alguns diziam que sim, outros não sabiam ou não podiam responder, alguns diziam que não. Visitavam trabalhadores nas fábricas, entre os diretores do filme e os trabalhadores, havia um diálogo sobre suas condições de trabalho e de vida. Apesar da dureza do tema, a câmera de Rouch e Morin era leve, como o filme em si. Pessoas comuns não se importavam em dar uma opinião sobre determinado tópico. Hoje isso pode parecer banal, na época, no entanto, certamente era uma nova experiência no cinema, de produzir e de apreciar . Nas locações, abordava os temas que interessavam aos realizadores discutirem, o trabalho e as condições de vida da França naquele momento. O crítico Carlos Alberto Mattos ao escrever sobre “a interferência contínua de Morin, Rouch e dos cinegrafistas no filme acaba por gerar uma verdade puramente cinematográfica, diferente dessa ideia lúdica e utópica de uma verdade absoluta do filme, que sabemos impossível, inclusive na vida fora das câmeras.” - certeiro. Este era um aspecto fascinante, o exercício desta linguagem permitia ao realizador criar sua verdade cinematográfica, assumindo de antemão que capturar a Verdade do momento era em tese, impossível. Tal proposta cinematográfica, abriu margem para uma sutil direção dos elementos que se desenvolviam diante da câmera, e de personagens, que agora não se intimidavam com o aparato cinematográfico mais compacto proporcionado pelas novas câmeras 16mm da década de 60.
Cabra Marcado pra Morrer (1984) foi considerado o melhor documentário brasileiro de todos os tempos pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, em 2017. Antes de analisar como Coutinho articulou a linguagem do cinema direto, seria adequado mencionar que o filme partiu do uso de uma metalinguagem para se articular: a metalinguagem ocorre quando uma obra comenta sobre si mesma, e sobre os processos de criação relacionados a sua linguagem. Isso também é visto em Crônica de um Verão de Jean Rouch. No caso de Coutinho, tudo começou em 1964. Ele filmava uma ficção sobre o líder camponês João Pedro Teixeira, paraibano assassinado em 1962, mártir da reforma agrária, devido à sua luta pelos direitos dos trabalhadores. As filmagens, no entanto, foram interrompidas 31 de março de 1964, dia do golpe militar, a equipe e os atores do filme foram perseguidos e presos; material de filmagem foi apreendido como propaganda comunista. A vida dos envolvidos em Cabra Marcado pra Morrer não seria mais a mesma.
Vinte anos depois, Coutinho retoma o projeto, agora em forma de documentário, abordando tanto a impossibilidade de concluir o filme original quanto o contexto sociopolítico daquele momento. Por meio de uma série de entrevistas com participantes das filmagens de 1964, Coutinho reconstrói a memória de João Pedro Teixeira. Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro, foi forçada à clandestinidade, e Coutinho usa sua história e a de seus 12 filhos para contar não apenas a trajetória de João Pedro, mas também o impacto do golpe militar na família e na comunidade. Assim, Sapé, na Paraíba, deixa de ser apenas um microcosmo para se tornar um documento histórico que revela os efeitos da ditadura militar tanto local quanto nacionalmente. Ao assistir Cabra Marcado pra Morrer aquele pequeno município, e a história de um homem, João Pedro Teixeira, passa a ser retrato de toda uma época de injustiças, perseguição, de luta e de resistência. Partindo desta transição entre a tentativa de realização de um filme e sua transformação em outra obra, vê-se a articulação de metalinguagem cinematográfica a serviço do objetivo do filme: dar voz aos trabalhadores rurais, mostrar sua luta, sua memória e sua identidade.
Numa comparação entre Cabra Marcado pra Morrer e Crônica de um Verão, no que se refere ao uso da linguagem do cinema direto, e considerando o filme de Rouch como pioneiro na articulação deste estilo cinematográfico, podemos perceber paralelos ao considerarmos essa linguagem como aquela que prioriza o naturalidade e a espontaneidade dos personagens. Coutinho cria laços de intimidade com os sujeitos e conduz entrevistas, fazendo intervenções sutis nas narrativas. Jean Rouch, por sua vez, também testa a intervenção durante a narrativa, mas com um olhar frequentemente etnográfico, buscando não apenas observar, mas compreender as dinâmicas culturais e sociais. No caso de Coutinho, a intervenção está a serviço de uma investigação da memória e identidade dos trabalhadores, enquanto a de Rouch se foca em um processo mais reflexivo sobre o próprio cinema e as relações sociais no contexto filmado. Ambos cineastas buscam captar com naturalidade os diálogos, abrindo mão da entrevista convencional para dar lugar a uma sensação de improviso. Coutinho visita seus personagens de surpresa, sem que estivessem preparados para falar ou responder perguntas sobre o passado. Como quando aparece de repente falar com João Batista, que havia interpretado João Pedro no filme de 1964. Ele não estava à vontade para falar — os problemas que aquelas filmagens causaram na comunidade com a perseguição dos militares, ainda era latente na memória. João Batista estava sentado em frente a um bar, numa rua pacata do interior. A câmera dá um close no rosto dele enquanto está em silêncio pensando no que irá dizer. Ele pensa, e se limita a dizer que nunca havia feito parte de nenhuma luta política, que apenas deseja paz para si; que seu papel no filme Cabra Marcado pra Morrer era apenas um trabalho. Assim como em Crônica de um Verão, Rouch visita fábricas, oficinas mecânicas, e entrevista os trabalhadores no calor do momento, Coutinho utiliza esse elemento do improviso para captar as reações e falas mais naturais possíveis diante da câmera. Para além do discurso em si, Coutinho também se interessava pela espontaneidade com que os sujeitos se expressavam diante da câmera. Isto é cinema direto. Atualmente, o uso desse estilo pode parecer menos inovador, mas o cinema direto continua sendo alternativa para obras que buscam capturar “as coisas como elas são.” Essa "verdade" é, na verdade, uma construção cinematográfica, moldada pelas interferências dos cineastas. Longe de desvalorizar o estilo, esse processo apenas engrandece a obra como cinema autoral, revelando a assinatura pessoal de seus criadores. Os dois filmes comparados aqui permanecem significativos em termos históricos, justamente por sua autenticidade de estilo.
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