Le Fantôme de la Liberté, O Fantasma da Liberdade (1974), um filme de Luís Buñuel
Não seria exagero afirmar que Le Fantôme de la Liberté, desde L’Age d’Or (1930), é o filme em que Buñuel teve a maior liberdade de expressão para levar ao limite extremo toda sua vocação para a arte surrealista. Depois do sucesso Le charme discret de la bourgeoisie (1972) seus produtores presentearam a Luís dando-lhe carta branca para fazer deste projeto o que bem entendesse. Um risco que aceitaram correr, dado que ao se tratar de um gênio como Buñuel, não foi algo assim tão difícil de suportar. Até porque o diretor se encontrava no auge de seu próprio estilo e de sua maturidade cinematográfica, realizando uma obra prima sem precedentes, rompendo radicalmente com as regras clássicas da dramatização. Neste filme contemplamos todas as provocações e insultos ao convencionalismo que Buñuel tanto almejou (e alcançou) em seu cinema – Le Fantôme de la Liberté representa um dos filmes mais típicos na representação de seu toque surrealista, e também um dos mais controversos, transgressores e provocativos, não só do próprio diretor mas também na história da arte cinematográfica.
Quando falamos em ruptura com as regras clássicas da dramatização, não se deve entender que Buñuel prescindia de tais regras, pois nesta etapa de sua carreira já dominava com maestria a arte de narrar com a câmera. O que vemos é um diretor que constrói uma narrativa apoiada nas regras tradicionais, mas que no momento adequado irá sistematicamente descompor esta forma, levando-a a um sentido absurdo – surrealista – pegando de surpresa (intencionalmente) aos espectadores mais desprevenidos. Neste filme, tais rupturas acontecem em cada um de seus 12 capítulos, onde em cada um deles apresenta um protagonista diferente. A complexidade e a pluralidade que compõe os tais 12 segmentos narrativos se intercomunicam pelo acaso. Além disso, o tal acaso pode ser interpretado paralelamente como a própria linguagem do subconsciente; neste filme o que a priori aparenta ser uma simples coincidência (o acaso) representa de fato, o elemento de ruptura introduzido por Buñuel para marcar a transição entre cada capitulo.
Para ilustrar somente uma destas situações que metodicamente estão presentes em todo o longa metragem, citamos um exemplo ocorrido por volta do minuto 74 da obra – ao final da celebre sequência da garota desaparecida. No momento em que o delegado diz ao seu auxiliar (um policial) “cuide de seus sapatos pois eles estão sem brilho” (este fato, que no contexto do filme soa cômico, representa a mencionada ruptura do eixo narrativo). Dizendo isso o delegado rompe totalmente o centro da narrativa em questão, voltada para o caso da menina desaparecida. A seguinte sequência já começa com este policial no engraxate, e ao seu lado se encontra o próximo cliente do engraxate. Este cliente é na verdade a figura que representa o elo entre esta sequência e a próxima: quando o policial sai de cena veremos então que este cliente é quem irá protagonizar o filme a partir de agora. Ao término de seu engraxe, acompanhamos este novo personagem até o alto de um arranha céu em Montparnasse, chegamos com ele no topo do prédio onde veremos que na maleta que carrega há uma escopeta, e que além do mais este atirador irá matar todas as pessoas que puder abaixo do arranha céu (logo, a sequência com o atirador terminará com seu julgamento no tribunal).
Dito isto, este exemplo do filme clarifica como que uma frase simples - cuide de seus sapatos pois eles estão sem brilho – fraturou a narração levando-a para a sequência seguinte, que por sua vez, tal sequência representa um absurdo surrealista (quem viu o filme sabe que a sequência anterior a esta, da mencionada garota desaparecida também beirava o absurdo surrealista , assim como o resto do filme). Neste ponto, deixamos de lado esta pequena analise narrativa, para ressaltar as origens da sequência que acabamos de descrever. Buñuel faz uma citação à André Breton – quando afirma em um de seus escritos: “ O gesto surrealista mais simples consiste em sair pelas ruas com uma arma no punho e abrir fogo na multidão”. Esta passagem, extraída da autobiografia de Buñuel ilustra literalmente, não só a cena mencionada acima, como também a ênfase que Buñuel dava, e cada vez mais, à prática do terrorismo. Veremos sua crescente inquietação frente a este tema em seu seguinte filme Cet Obscure Object du Desire (1977). Um filme como este, sendo visto e revisto, que foi objeto de inúmeros estudos acadêmicos, abordado não só pela área de estudos cinematográficos mas também contextualizado em estudos de Sociologia e Psicanálise; evidentemente estamos tratando de uma obra que já foi muito debatida, e que portanto nos oferece múltiplas leituras. O crítico Marco Lanzagorta que escreveu um dos melhores artigos sobre Le Fantôme de la Liberté para Senses of Cinema apontou certeiramente sua forma transgressora, ao tocar em temas diversos e escandalosos como : pedofilia, incesto, necrofilia, sadomasoquismo, múltiplo assassinato. O mesmo crítico também indica no final do seu artigo diferentes interpretações do filme, citando a Susan Suleiman, ela conclui que a estrutura narrativa de Le Fantôme de la Liberté similar ao pensamento esquizofrênico. E finaliza seu texto ressaltando que sendo um filme que gera diferentes leituras , nem sempre as tais são contraditórias entre si. Apoiados nesta afirmação, podemos dizer que Le Fantôme de le Liberté é um filme que celebra o acaso, celebra nossa incapacidade de prever as consequências que um mínimo gesto, uma simples frase, é capaz de levar a cada um de nós. Já que não somos capazes de controlas as consequências de nossas ações.
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