The Substance | A Substância (2024), Vítimas do desejo, psicodrama e exercício de gênero

Minha visão de tudo mudou, principalmente a visão do cinema, desde que conheci alguns conceitos da psicanálise lacaniana, algo recente nos meus 39 anos, e algo que recomendo a todos conhecerem. Somente agora, depois de décadas de cinefilia, percebi que estou aprendendo de fato, e digo com muita humildade, o por que do cinema e da psicanálise serem objetos de estudo, análise, e perspectiva de olhar para esta arte. A Substância é um excelente exemplo de como esses dois campos se encontram.

Além do olhar sobre a psicanálise, The Substance também é visto aqui como exercício de gênero. O filme articula o psicodrama e outros gêneros do cinema, o terror e a ficção científica, e o subgênero body horror. As referências estéticas e de composição eram muito claras: víamos remakes de cenários de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, misturados aos corredores de O Iluminado. O uso das cores, o vermelho destacado nas portas e paredes, o azul em outras linhas, remetia à paleta de Godard em Pierrot le Fou. Consegui perceber referências à maravilhosa fotografia de Jean-Yves Escoffier em Mauvais Sang, ao iluminar Demi Moore em alguns planos como ele havia feito com Juliette Binoche, em pequenas referências ao cinema noir. Além das questões estéticas, a direção de Coralie Fargeat foi muito consistente nessa articulação. Frequentemente, a câmera buscava ângulos e pontos de vista muito originais, como o plano nadir em cima da calçada da fama, e as câmeras escondidas nos espaços do filme, dando a sensação de vigilância e tensão. Os planos subjetivos reforçavam o filme, sempre buscando um ponto de vista incomum, distorcido, deslocando o olhar do espectador para múltiplas formas de perceber a narrativa, criando uma composição geral muito autêntica e marcante. A diretora realmente imprimiu sua assinatura pessoal, mesmo no meio de tantas referências.

Mas o olhar mais interessante foi o psicanalítico. Do ponto de vista de Lacan, esse era um conflito entre o Eu Imaginário (moi) e o Eu Simbólico (je). O desejo por ter um corpo diferente era uma demanda social opressiva, imposta pelo Grande Outro. A Substância, uma vez aplicada no corpo, materializava o Eu Imaginário – e, nessa disputa de Elisabeth Sparkle com ela mesma, seu imaginário foi levado no roteiro até as últimas consequências (vencedor de melhor roteiro em Cannes 2024). O que vemos em Substance é uma visão cinematográfica e propositalmente bizarra, da neurose levada até o seu limite. Então, o filme articula o desejo da atriz em ter ou voltar a ter o padrão estético imposto pelo Outro, de forma que ela perde controle de seu próprio desejo. O desejo domina o sujeito ao ponto da desintegração subjetiva. O filme é uma crítica à tendência de procedimentos estéticos tão presentes hoje, que deformam muitos sujeitos, fazendo com que eles pareçam não se importar em se transformar em figuras bizarras, desde que sejam diferentes do Eu Simbólico. Em última análise, o sujeito vira vítima do seu desejo.

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