O Agente Secreto (2025), Kleber Mendonça Filho

 

Os últimos ventos de um ciclone que destruiu municípios no sul do Paraná ainda pairavam por São Paulo, neste último domingo a noite. Fazia frio para novembro, e uma leve garoa caia na cidade. Achei uma boa ideia me abrigar no cinema. A sessão era 21h10 do Cineflix, cinema mais próximo da minha casa. As poltronas eram reclináveis ao máximo. O filme era O Agente Secreto, vencedor de melhor diretor no Festival de Cannes em 2025, Kleber Mendonça Filho, e melhor ator, Wagner Moura, além do prêmio FIPRESCI.

Muito tem se falado sobre este filme, lançamento aguardado aqui no Brasil após os louros na França. Não quero cair na tentação de descrever a trama, pois escrevo mais para o leitor que já assistiu a quem veio em busca de linhas sobre o enredo. Eu acho que entendi o que Mendonça quis fazer nesta obra: misturar uma narrativa entre memórias cinematográficas pessoais; a um retrato iconográfico do Brasil dos anos 70, e articular uma espécie de exercício de gênero, em tributo ao cinema que o diretor admira.

A memória afetiva era vista principalmente no espaço do tradicional Cinema São Luís na cidade do Recife, e pelo vínculo de Armando (Moura) com o projecionista da sala. Este espaço em particular adquire uma associação natural, quase poética, uma espécie de tributo ao próprio cinema, ainda mais, por se tratar de uma sala a qual o próprio diretor têm um vínculo afetivo. Portanto, vemos neste espaço, uma tentativa de Mendonça criar uma espécie de Cinema Paradiso para si. Que Armando tenha se casado com a filha do projecionista da sala, pode ser visto aqui, o protagonista como uma projeção de um eu que se reconhece e se perde no reflexo do cinema , o espaço do cinema São Luis é visto como uma metáfora do inconsciente fílmico, lugar onde a imagem vira vestígios da memória do autor, e até do cinema brasileiro.

A iconografia do Brasil dos anos 70 é um dos pontos fortes do filme. A parte visual foi uma das mais elogiadas por todos. Os tons foram sabiamente elaborados a cada transição de capitulo, transitando para cálidos na primeira parte, frios na segunda e neutros na terceira, em termos gerais. O filme resgata o design das marcas da época, Kodak, Coca-Cola, marcas esquecidas de sabão em pó, uniformes antigos dos correios, a pintura das viaturas. O vestuário também foi muito bem caracterizado. Digna de menção também foi o uso do som, muito criativo, cinematograficamente justificado, quer dizer, não era só pra ficar cool, e mesmo se fosse, ficou mesmo. 

A trilha sonora foi usada tanto para ambiência como para distorções, usando instrumentos do frevo, e até grilos, criando fundo de suspense; até a cena em que resgata sinfonias do cinema noir dos anos 50, quando a perna cabeluda ataca numa praça da capital pernambucana.

E era justamente essa perna que funcionava como o elemento de exercício de gênero. O body horror, aqui,  era visto menos como incursão isolada e mais como uma obsessão recorrente de Mendonça, perceptível pra mim desde seus primeiros filmes. A apropriação desse imaginário grotesco e artesanal não era gratuita: ela operava como um distanciamento, uma espécie de quarta parede irônica que o diretor se permite demolir — e que o espectador, por sua vez, podia reconhecer. Era o instante em que o filme se assumia como jogo, havia um prazer quase cínico em revisitar signos já saturados , sobretudo num momento em que títulos como Substance (2024) recolocam esse tipo de horror no centro da cultura pop.

Com relação ao roteiro. Eu entendi o esforço de criar uma atmosfera similar a de O Som ao Redor (2012) e Aquarius  (2015), onde Mendonça articulara muito bem o perigo que não se vê. Aqui ele abriu concessão nos personagens secundários, os matadores de aluguel, mas manteve o suspense do desfecho até o final. Por outro lado, o filme pareceu girar em torno de arcos com ênfase nos signos afetivos, sem progredir para uma mensagem. A estudante que acompanha em paralelo presente o material de arquivo sobre perseguidos na ditadura foi uma mensagem cinematograficamente pouco potente, teria ficado bom numa novela teen , na minha opinião. 

Visto sob esses três eixos — os afetos do autor, a construção iconográfica dos anos 70 e o exercício de gênero O Agente Secreto me pareceu um filme que se acomodou em sua própria sofisticação. O gozo estético, pra mim, não bastava: belo, mas estéril, não havia ponto de contato entre os afetos e o pensamento. Havia direção refinada, havia domínio formal, mas faltava o desassossego — aquilo que faz o cinema ser de fato, original.  Conformado com o saudosismo e com um retrato estilizado de uma época, como se a memória bastasse. Esse “cinema de vitrine” que revisitava a ditadura servia mais ao olhar estrangeiro do que à nossa inquietação interna, coincidência ruim, exatamente como Ainda Estou Aqui (2024). Identifico isso como cinema burguês. Enquanto isso faltava-lhe risco, faltava-lhe pensamento. Devo dizer que meu gosto pessoal é um pouco avesso a filmes que revisitam o passado. Lembro do meu professor Luis Aller elogiar M. (1931) de Fritz Lang como um filme que previa o futuro, e O Pianista (2002) de Polanski como filme inútil. Aller vive em mim como fantasma, entre outros. Além disso, talvez dando ouvidos demais a estes fantasmas do passado,  quando sento para escrever uma crítica, raramente o cinema contemporâneo me pega num bom dia.

Fui para o estacionamento. Caminhando até o carro o vento frio me cortou. Godard, sempre ele, vinha-me à mente. Uma vez, quando perguntado sobre  Tarantino, dissera, que a diferença entre eles era , Tarantino vivia do cinema, enquanto o cinema vivia nele. Tarantino vive do cinema, enquanto o cinema vive em mim. Talvez Mendonça ainda viva do cinema — quando o que se espera dele é que o cinema, enfim, viva nele. VIVA GODARD!

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